De Pai para Filho: Sucessão e Governança em Supermercados Familiares

18 de junho de 2025

Por Dra. Evelin Steidel — Sócia e responsável pelo Núcleo Societário da Melo Advogados Associados

Por que a sucessão é um ponto crítico nas empresas familiares brasileiras?

A sucessão em supermercados familiares é essencial para garantir a continuidade, evitar disputas e preservar o legado construído por gerações.

No Brasil, aproximadamente 90% das empresas são familiares, empregando cerca de 75% da mão de obra. No entanto, poucas conseguem ultrapassar a terceira geração, evidenciando, portanto, a necessidade crítica de um processo sucessório bem estruturado.

Para marcas de supermercado, com raízes frequentemente regionais e forte ligação com a família fundadora, a sucessão planejada é crucial. Sem o devido cuidado, esse processo pode resultar em conflitos familiares, prejuízos financeiros e, principalmente, na fragmentação de uma marca construída ao longo de décadas.

Por que o planejamento sucessório é vital no varejo?

Um planejamento patrimonial e sucessório bem estruturado, utilizando as diversas ferramentas disponíveis, aliado a boas práticas de governança corporativa e a um planejamento tributário eficiente, pode prevenir a fragmentação de marcas de supermercado ao:

Evitar conflitos familiares e societários

A ausência de regras claras na sucessão pode levar à pulverização do capital e da operação, comprometendo a marca e o legado. Disputas entre herdeiros, por sua vez, podem resultar em experiências inconsistentes para o consumidor, diluição da identidade da marca e perda de poder de barganha com fornecedores.

Garantir a continuidade e longevidade do negócio

Profissionalizar a gestão e a sucessão é crucial para a permanência e o crescimento sólido e efetivo da organização em um mercado competitivo e regulado. Dessa forma, torna-se possível preparar a empresa para os desafios do futuro com maior estabilidade.

Proteger o patrimônio empresarial

Ferramentas adequadas segregam o que é patrimônio dos sócios e o que é patrimônio da empresa. Assim, protegem esses patrimônios tanto contra questões pessoais quanto empresariais.

Ferramentas para a sucessão em supermercados familiares

Para alcançar esses objetivos, diversas ferramentas e práticas podem ser utilizadas:

Holding Familiar

Como ajuda:
Permite organizar e centralizar a gestão patrimonial e societária em uma única estrutura jurídica, onde os herdeiros se tornam quotistas ou acionistas da holding que, por sua vez, detém o controle das empresas operacionais e dos ativos familiares.

Vantagens:

  • Antecipa a sucessão, quando feita, por exemplo, por meio de doações com reserva de usufruto e cláusulas restritivas (inalienabilidade, impenhorabilidade e incomunicabilidade), evitando a judicialização da transmissão do patrimônio através de inventário, mas mantendo os patriarcas e matriarcas na gestão.
  • Além disso, oferece maior controle na entrada e saída de sócios, prevenindo disputas judiciais.
  • Protege o patrimônio familiar contra passivos empresariais e pode formalizar receitas para otimizar questões tributárias.
  • Por fim, segrega as atividades empresariais das atividades imobiliárias, trazendo maior proteção para essa última quanto aos riscos inerentes à atividade empresarial.

Acordo de Sócios

Como ajuda:
É um instrumento formal e essencial para estabelecer regras claras para a convivência entre os sócios e proteger o relacionamento entre eles. Ele previne disputas, proporciona uma relação transparente e harmônica entre os sócios e oferece segurança jurídica para os envolvidos.

Cláusulas essenciais:

  • Estabelecimento de quórum para decisões estratégicas.
  • Direito de preferência para a venda e aumento de capital, evitando diluições.
  • Cláusulas de saída, como a Tag Along — que permite a sócios minoritários acompanharem o sócio controlador na venda das participações — e a Drag Along, que obriga o sócio minoritário a vender suas participações junto com as do controlador.
  • Mecanismos de solução de conflitos, como mediação e arbitragem.
  • Políticas de distribuição de lucros e remuneração de administradores.
  • Além disso, é essencial definir critérios de valuation para apuração de preço justo em caso de saída de sócios.

Protocolo de Família

Como ajuda:
Vai além do instrumento jurídico, sendo um pacto moral e estratégico com o objetivo de preservar a unidade familiar e empresarial no longo prazo.

Conteúdos comuns:

  • Define a missão, visão e princípios da família.
  • Estabelece regras para ingresso de familiares na empresa (formação mínima, estágio externo).
  • Aponta políticas de meritocracia, avaliação de desempenho e planos de sucessão para cargos-chave.
  • Dessa forma, mantém o alinhamento entre valores familiares e decisões empresariais.

Doações Planejadas

Como ajuda:
A doação de quotas ou ações com reserva de usufruto e cláusulas restritivas é uma ferramenta que permite iniciar o processo de sucessão ainda em vida, garantindo controle e segurança jurídica. O doador mantém os poderes de gestão e os rendimentos, enquanto antecipa a titularidade aos herdeiros. Isso evita disputas futuras e reduz custos com inventário.

Vantagens:

  • Evita a abertura de inventário e os custos judiciais e tributários associados.
  • Garante continuidade administrativa do negócio durante o processo sucessório.
  • Permite cláusulas específicas para proporcionar a incomunicabilidade do patrimônio recebido por herança com cônjuges e companheiros.
  • Além disso, possibilita reorganizar a estrutura societária com previsibilidade e governança.

Testamento

Como contribui:
Quando não se quer recorrer à doação em vida, mas ainda assim é importante garantir que a vontade seja respeitada e que o patrimônio permaneça na família, o testamento é uma excelente alternativa. Ele permite que o titular disponha da parte disponível dos bens com clareza e segurança. É especialmente útil em situações que envolvem famílias com estruturas mais complexas ou quando há preocupações específicas com o futuro da gestão e preservação do patrimônio.

A combinação de doações em vida e testamento é altamente recomendável em muitos contextos familiares. Normalmente, da primeira para a segunda geração utiliza-se a doação com reserva de usufruto; da segunda para a terceira, o testamento. Contudo, sempre há diversas variações, dependendo do contexto familiar.

Governança como pilar na sucessão de supermercados familiares

A governança corporativa é um dos pilares mais robustos para estruturar a sucessão em supermercados familiares. Ela confere clareza, previsibilidade e equilíbrio nas relações entre sócios, herdeiros e gestores.

Dessa forma, quando falamos em sucessão e sucesso no mundo dos negócios, é impossível ignorar a importância da governança corporativa. Muito além de grandes corporações e conselhos de administração complexos, a governança também faz diferença em empresas familiares e sociedades limitadas — independentemente do porte.

Estrutura clara reduz conflitos e aumenta previsibilidade

Adotar boas práticas de governança significa, na prática, organizar a casa. É criar uma estrutura clara de papéis, decisões e responsabilidades. Isso favorece o crescimento sustentável da empresa, evita conflitos entre sócios, melhora o relacionamento com investidores, bancos e fornecedores e contribui para a longevidade do negócio.

Transparência, responsabilidade e equilíbrio nas relações são os pilares centrais da governança. E quando esses pilares estão bem definidos, a empresa opera com mais segurança — inclusive para conduzir processos de sucessão, entrada de novos sócios ou reorganizações estratégicas.

A cultura da integridade como base da resiliência empresarial

Um ponto importante dentro desse cenário é o fortalecimento da cultura de integridade. A implementação de práticas alinhadas à legislação, aos valores da empresa e aos padrões éticos do mercado contribui para decisões mais seguras, reduz riscos desnecessários e protege o patrimônio e a reputação construídos ao longo do tempo.

Essas medidas, por conseguinte, tornam a gestão mais sólida e preparada para os desafios do crescimento.

Como a governança prepara a empresa para o futuro

Adotar mecanismos de transparência, compliance e equilíbrio entre sócios, herdeiros e administradores aumenta a previsibilidade e a confiança na gestão. Além disso, favorece relações institucionais com fornecedores e bancos e protege a marca frente a eventos inesperados, como falecimentos ou disputas patrimoniais.

Benefícios concretos da governança:

  • Crescimento sustentável e estruturado.
  • Relação fortalecida com fornecedores, instituições financeiras e investidores.
  • Clareza de papéis entre familiares, executivos e conselheiros.
  • Cultura de integridade e prestação de contas.
  • Preparação para IPO, fusões ou venda estratégica no futuro.

Da teoria à prática: estruturando a sucessão com governança

O caso Walmart: lições globais para negócios locais

A história do Walmart, a maior empresa familiar do mundo, é frequentemente associada ao sucesso e à inovação no varejo. No entanto, também oferece uma lição valiosa sobre os riscos de um processo sucessório desorganizado.

Sam Walton criou a holding familiar Walton Enterprises em 1953 — que hoje funciona como uma family office, a maior do mundo — para gerir os ativos da família. Anos depois, em 1962, fundou o primeiro Walmart, que viria a se transformar em um império global do varejo. Apesar da criação da holding, Walton manteve um controle altamente pessoal sobre os negócios até sua morte, em 1992. A transição executiva só ocorreu após seu falecimento — um risco evitável com planejamento antecipado.

O processo sucessório da família Walton evidencia os riscos de não antecipar a transição de liderança nem preparar adequadamente a nova geração. Houve herdeiros, mas não sucessores. Com a morte do fundador, os herdeiros assumiram o controle acionário, mas sem um protocolo sucessório claro. Isso gerou instabilidade na liderança, perda de identidade cultural e críticas à gestão dos sucessores — ainda que a empresa permanecesse financeiramente sólida. As falhas só foram enfrentadas posteriormente, com a implementação tardia de práticas de governança corporativa.

Além disso, os filhos do fundador herdaram participações por meio de estruturas como trusts e a própria holding. No entanto, o envolvimento deles no dia a dia do negócio foi limitado. Essa situação pode até funcionar em grandes conglomerados. Entretanto, em empresas menores, a ausência de sucessores ativos pode afetar a cultura organizacional e a percepção de continuidade do legado.

Lições do Walmart para supermercadistas familiares:

  • Inicie cedo a transição e prepare sucessores e executivos com visão estratégica.
  • Reforce a cultura da família como elemento norteador na expansão e nas decisões.
  • Promova formação técnica e vivência prática dos sucessores antes da passagem de bastão.
  • Estabeleça diretrizes claras sobre o posicionamento público de sócios e sucessores.

Conclusão: sucessão é gestão de futuro — e o futuro começa agora

Para marcas familiares do varejo, a sucessão não é apenas uma transição de comando: é uma decisão estratégica que determina se o legado construído com tanto esforço será fortalecido ou diluído.

A longevidade de uma empresa está diretamente ligada à sua capacidade de antecipar desafios, profissionalizar a gestão e alinhar família, patrimônio e negócio com responsabilidade.

Estruturar a sucessão exige mais do que boa intenção — requer planejamento, diálogo e o uso inteligente de ferramentas jurídicas, societárias e de governança. Quando essas ferramentas são bem aplicadas, tornam-se aliadas poderosas para proteger a marca, evitar rupturas e preparar as próximas gerações para liderar com propósito e competência.

O exemplo de gigantes como o Walmart serve de alerta: mesmo empresas robustas podem enfrentar turbulências se não cuidarem da sucessão com a devida antecedência. Para supermercados familiares, muitas vezes enraizados em valores regionais e laços afetivos, a governança antecipada é ainda mais determinante.

Não se trata apenas de passar o bastão — mas de garantir que a próxima geração esteja pronta para carregá-lo com firmeza. E isso só é possível quando o futuro é tratado como prioridade no presente.

Melo Advogados Associados permanece sempre à disposição para esclarecer quaisquer dúvidas e oferecer suporte especializado necessário sobre esse e outros temas.

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