Por Dra. Evelin Steidel — Sócia e responsável pelo Núcleo Societário da Melo Advogados Associados
Por que a sucessão é um ponto crítico nas empresas familiares brasileiras?
A sucessão em supermercados familiares é essencial para garantir a continuidade, evitar disputas e preservar o legado construído por gerações.
No Brasil, aproximadamente 90% das empresas são familiares, empregando cerca de 75% da mão de obra. No entanto, poucas conseguem ultrapassar a terceira geração, evidenciando, portanto, a necessidade crítica de um processo sucessório bem estruturado.
Para marcas de supermercado, com raízes frequentemente regionais e forte ligação com a família fundadora, a sucessão planejada é crucial. Sem o devido cuidado, esse processo pode resultar em conflitos familiares, prejuízos financeiros e, principalmente, na fragmentação de uma marca construída ao longo de décadas.
Por que o planejamento sucessório é vital no varejo?
Um planejamento patrimonial e sucessório bem estruturado, utilizando as diversas ferramentas disponíveis, aliado a boas práticas de governança corporativa e a um planejamento tributário eficiente, pode prevenir a fragmentação de marcas de supermercado ao:
Evitar conflitos familiares e societários
A ausência de regras claras na sucessão pode levar à pulverização do capital e da operação, comprometendo a marca e o legado. Disputas entre herdeiros, por sua vez, podem resultar em experiências inconsistentes para o consumidor, diluição da identidade da marca e perda de poder de barganha com fornecedores.
Garantir a continuidade e longevidade do negócio
Profissionalizar a gestão e a sucessão é crucial para a permanência e o crescimento sólido e efetivo da organização em um mercado competitivo e regulado. Dessa forma, torna-se possível preparar a empresa para os desafios do futuro com maior estabilidade.
Proteger o patrimônio empresarial
Ferramentas adequadas segregam o que é patrimônio dos sócios e o que é patrimônio da empresa. Assim, protegem esses patrimônios tanto contra questões pessoais quanto empresariais.
Ferramentas para a sucessão em supermercados familiares
Para alcançar esses objetivos, diversas ferramentas e práticas podem ser utilizadas:
Holding Familiar
Como ajuda:
Permite organizar e centralizar a gestão patrimonial e societária em uma única estrutura jurídica, onde os herdeiros se tornam quotistas ou acionistas da holding que, por sua vez, detém o controle das empresas operacionais e dos ativos familiares.
Vantagens:
- Antecipa a sucessão, quando feita, por exemplo, por meio de doações com reserva de usufruto e cláusulas restritivas (inalienabilidade, impenhorabilidade e incomunicabilidade), evitando a judicialização da transmissão do patrimônio através de inventário, mas mantendo os patriarcas e matriarcas na gestão.
- Além disso, oferece maior controle na entrada e saída de sócios, prevenindo disputas judiciais.
- Protege o patrimônio familiar contra passivos empresariais e pode formalizar receitas para otimizar questões tributárias.
- Por fim, segrega as atividades empresariais das atividades imobiliárias, trazendo maior proteção para essa última quanto aos riscos inerentes à atividade empresarial.
Acordo de Sócios
Como ajuda:
É um instrumento formal e essencial para estabelecer regras claras para a convivência entre os sócios e proteger o relacionamento entre eles. Ele previne disputas, proporciona uma relação transparente e harmônica entre os sócios e oferece segurança jurídica para os envolvidos.
Cláusulas essenciais:
- Estabelecimento de quórum para decisões estratégicas.
- Direito de preferência para a venda e aumento de capital, evitando diluições.
- Cláusulas de saída, como a Tag Along — que permite a sócios minoritários acompanharem o sócio controlador na venda das participações — e a Drag Along, que obriga o sócio minoritário a vender suas participações junto com as do controlador.
- Mecanismos de solução de conflitos, como mediação e arbitragem.
- Políticas de distribuição de lucros e remuneração de administradores.
- Além disso, é essencial definir critérios de valuation para apuração de preço justo em caso de saída de sócios.
Protocolo de Família
Como ajuda:
Vai além do instrumento jurídico, sendo um pacto moral e estratégico com o objetivo de preservar a unidade familiar e empresarial no longo prazo.
Conteúdos comuns:
- Define a missão, visão e princípios da família.
- Estabelece regras para ingresso de familiares na empresa (formação mínima, estágio externo).
- Aponta políticas de meritocracia, avaliação de desempenho e planos de sucessão para cargos-chave.
- Dessa forma, mantém o alinhamento entre valores familiares e decisões empresariais.
Doações Planejadas
Como ajuda:
A doação de quotas ou ações com reserva de usufruto e cláusulas restritivas é uma ferramenta que permite iniciar o processo de sucessão ainda em vida, garantindo controle e segurança jurídica. O doador mantém os poderes de gestão e os rendimentos, enquanto antecipa a titularidade aos herdeiros. Isso evita disputas futuras e reduz custos com inventário.
Vantagens:
- Evita a abertura de inventário e os custos judiciais e tributários associados.
- Garante continuidade administrativa do negócio durante o processo sucessório.
- Permite cláusulas específicas para proporcionar a incomunicabilidade do patrimônio recebido por herança com cônjuges e companheiros.
- Além disso, possibilita reorganizar a estrutura societária com previsibilidade e governança.
Testamento
Como contribui:
Quando não se quer recorrer à doação em vida, mas ainda assim é importante garantir que a vontade seja respeitada e que o patrimônio permaneça na família, o testamento é uma excelente alternativa. Ele permite que o titular disponha da parte disponível dos bens com clareza e segurança. É especialmente útil em situações que envolvem famílias com estruturas mais complexas ou quando há preocupações específicas com o futuro da gestão e preservação do patrimônio.
A combinação de doações em vida e testamento é altamente recomendável em muitos contextos familiares. Normalmente, da primeira para a segunda geração utiliza-se a doação com reserva de usufruto; da segunda para a terceira, o testamento. Contudo, sempre há diversas variações, dependendo do contexto familiar.
Governança como pilar na sucessão de supermercados familiares
A governança corporativa é um dos pilares mais robustos para estruturar a sucessão em supermercados familiares. Ela confere clareza, previsibilidade e equilíbrio nas relações entre sócios, herdeiros e gestores.
Dessa forma, quando falamos em sucessão e sucesso no mundo dos negócios, é impossível ignorar a importância da governança corporativa. Muito além de grandes corporações e conselhos de administração complexos, a governança também faz diferença em empresas familiares e sociedades limitadas — independentemente do porte.
Estrutura clara reduz conflitos e aumenta previsibilidade
Adotar boas práticas de governança significa, na prática, organizar a casa. É criar uma estrutura clara de papéis, decisões e responsabilidades. Isso favorece o crescimento sustentável da empresa, evita conflitos entre sócios, melhora o relacionamento com investidores, bancos e fornecedores e contribui para a longevidade do negócio.
Transparência, responsabilidade e equilíbrio nas relações são os pilares centrais da governança. E quando esses pilares estão bem definidos, a empresa opera com mais segurança — inclusive para conduzir processos de sucessão, entrada de novos sócios ou reorganizações estratégicas.
A cultura da integridade como base da resiliência empresarial
Um ponto importante dentro desse cenário é o fortalecimento da cultura de integridade. A implementação de práticas alinhadas à legislação, aos valores da empresa e aos padrões éticos do mercado contribui para decisões mais seguras, reduz riscos desnecessários e protege o patrimônio e a reputação construídos ao longo do tempo.
Essas medidas, por conseguinte, tornam a gestão mais sólida e preparada para os desafios do crescimento.
Como a governança prepara a empresa para o futuro
Adotar mecanismos de transparência, compliance e equilíbrio entre sócios, herdeiros e administradores aumenta a previsibilidade e a confiança na gestão. Além disso, favorece relações institucionais com fornecedores e bancos e protege a marca frente a eventos inesperados, como falecimentos ou disputas patrimoniais.
Benefícios concretos da governança:
- Crescimento sustentável e estruturado.
- Relação fortalecida com fornecedores, instituições financeiras e investidores.
- Clareza de papéis entre familiares, executivos e conselheiros.
- Cultura de integridade e prestação de contas.
- Preparação para IPO, fusões ou venda estratégica no futuro.
Da teoria à prática: estruturando a sucessão com governança
O caso Walmart: lições globais para negócios locais
A história do Walmart, a maior empresa familiar do mundo, é frequentemente associada ao sucesso e à inovação no varejo. No entanto, também oferece uma lição valiosa sobre os riscos de um processo sucessório desorganizado.
Sam Walton criou a holding familiar Walton Enterprises em 1953 — que hoje funciona como uma family office, a maior do mundo — para gerir os ativos da família. Anos depois, em 1962, fundou o primeiro Walmart, que viria a se transformar em um império global do varejo. Apesar da criação da holding, Walton manteve um controle altamente pessoal sobre os negócios até sua morte, em 1992. A transição executiva só ocorreu após seu falecimento — um risco evitável com planejamento antecipado.
O processo sucessório da família Walton evidencia os riscos de não antecipar a transição de liderança nem preparar adequadamente a nova geração. Houve herdeiros, mas não sucessores. Com a morte do fundador, os herdeiros assumiram o controle acionário, mas sem um protocolo sucessório claro. Isso gerou instabilidade na liderança, perda de identidade cultural e críticas à gestão dos sucessores — ainda que a empresa permanecesse financeiramente sólida. As falhas só foram enfrentadas posteriormente, com a implementação tardia de práticas de governança corporativa.
Além disso, os filhos do fundador herdaram participações por meio de estruturas como trusts e a própria holding. No entanto, o envolvimento deles no dia a dia do negócio foi limitado. Essa situação pode até funcionar em grandes conglomerados. Entretanto, em empresas menores, a ausência de sucessores ativos pode afetar a cultura organizacional e a percepção de continuidade do legado.
Lições do Walmart para supermercadistas familiares:
- Inicie cedo a transição e prepare sucessores e executivos com visão estratégica.
- Reforce a cultura da família como elemento norteador na expansão e nas decisões.
- Promova formação técnica e vivência prática dos sucessores antes da passagem de bastão.
- Estabeleça diretrizes claras sobre o posicionamento público de sócios e sucessores.
Conclusão: sucessão é gestão de futuro — e o futuro começa agora
Para marcas familiares do varejo, a sucessão não é apenas uma transição de comando: é uma decisão estratégica que determina se o legado construído com tanto esforço será fortalecido ou diluído.
A longevidade de uma empresa está diretamente ligada à sua capacidade de antecipar desafios, profissionalizar a gestão e alinhar família, patrimônio e negócio com responsabilidade.
Estruturar a sucessão exige mais do que boa intenção — requer planejamento, diálogo e o uso inteligente de ferramentas jurídicas, societárias e de governança. Quando essas ferramentas são bem aplicadas, tornam-se aliadas poderosas para proteger a marca, evitar rupturas e preparar as próximas gerações para liderar com propósito e competência.
O exemplo de gigantes como o Walmart serve de alerta: mesmo empresas robustas podem enfrentar turbulências se não cuidarem da sucessão com a devida antecedência. Para supermercados familiares, muitas vezes enraizados em valores regionais e laços afetivos, a governança antecipada é ainda mais determinante.
Não se trata apenas de passar o bastão — mas de garantir que a próxima geração esteja pronta para carregá-lo com firmeza. E isso só é possível quando o futuro é tratado como prioridade no presente.
A Melo Advogados Associados permanece sempre à disposição para esclarecer quaisquer dúvidas e oferecer suporte especializado necessário sobre esse e outros temas.