Planejamento Patrimonial e Sucessório e os Vínculos Socioafetivos

13 de março de 2025

O planejamento patrimonial e sucessório tem como um dos objetivos organizar a transmissão de bens e direitos, protegendo o patrimônio e oferecendo segurança jurídica às gerações futuras, especialmente diante do reconhecimento dos vínculos socioafetivos.

Ao longo dos anos, a socioafetividade tem ganhado maior reconhecimento, o que influencia diretamente os direitos sucessórios e a organização patrimonial, tornando necessária a revisão das estratégias de planejamento.

O Reconhecimento Jurídico da Socioafetividade

A socioafetividade refere-se ao reconhecimento jurídico das relações familiares baseadas no afeto, independentemente do vínculo biológico. Esse conceito reflete a evolução da família no Brasil, alinhando-se aos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF) e da proteção à entidade familiar (art. 226, CF).

O parentesco civil decorre diretamente da lei, estabelecendo vínculos familiares com base em normas jurídicas. Por outro lado, o parentesco socioafetivo surge das relações familiares de afeto e convivência, sendo reconhecido pela lei mediante provocação. 

Para que o vínculo socioafetivo seja formalmente validado, seja judicialmente ou por meio de registro em cartório, ele precisa ser reconhecido, especialmente para maiores de idade.

O artigo 1.593 do Código Civil reconhece que o parentesco pode ser tanto natural (biológico) quanto civil, e essa previsão oferece o suporte normativo para a legitimação dos vínculos socioafetivos, expandindo a concepção de família além das estruturas biológicas tradicionais, o que já vem ampliado no projeto de alteração do código.

Essa ampliação está em consonância com o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF), que assegura o reconhecimento e proteção dos vínculos afetivos. Além disso, o princípio da proteção integral e do melhor interesse da criança e do adolescente (art. 227 da CF) reforça a importância do afeto nas relações familiares, visando sempre o bem-estar do indivíduo.

Esses princípios, somados ao princípio da isonomia (art. 5º, caput, da CF), que garante a igualdade de tratamento entre diferentes tipos de vínculos familiares, asseguram que os vínculos socioafetivos possuam a mesma legitimidade jurídica que os biológicos. 

Princípios como afetividade, solidariedade familiar e função social da família sustentam o reconhecimento dos laços afetivos, ampliando as possibilidades de constituição familiar em uma sociedade plural.

Temos assim que, o impacto prático do reconhecimento da socioafetividade se estende ao âmbito patrimonial e sucessório. Ela cria novos cenários na composição de heranças e no direito de meação. 

A inclusão de herdeiros socioafetivos, por exemplo, pode alterar significativamente a partilha de bens, conforme ilustrado em diversas jurisprudências que reafirmam a importância do afeto como critério jurídico. 

Essa evolução protege relações familiares não tradicionais, mas exige planejamento patrimonial cuidadoso para considerar os impactos legais e financeiros do reconhecimento socioafetivo.

Assim, o ordenamento jurídico brasileiro reafirma a centralidade da afetividade no Direito de Família, enquanto impõe novos desafios para a gestão patrimonial e sucessória.

Jurisprudência Relevante sobre Vínculos Socioafetivos

O reconhecimento jurídico da socioafetividade tem encontrado amplo respaldo em decisões recentes dos tribunais brasileiros, consolidando-se como um elemento central no Direito de Família contemporâneo. 

A jurisprudência reforça o afeto como critério para vínculos familiares e contribui para um ordenamento jurídico alinhado à dignidade humana e proteção à família.

No julgamento do RE 898.060/SC, com repercussão geral, o Supremo Tribunal Federal consolidou a tese de que a paternidade socioafetiva pode coexistir com a biológica, desde que ambas sejam reconhecidas juridicamente. 

A decisão garante que o vínculo biológico não impede o reconhecimento do socioafetivo, permitindo a coexistência de ambos com efeitos jurídicos próprios. A tese fixada estabeleceu que a paternidade socioafetiva, registrada ou não, pode coexistir com a biológica, garantindo efeitos jurídicos próprios a ambos os vínculos.

Dessa forma, o STF reconheceu a possibilidade de coexistência de ambas as formas de paternidade ou parentesco, sem que uma anule a outra.

Esse entendimento, portanto, foi reafirmado no Acórdão do Resp n° 2088791 - GO (2023/0126799-2), que tratou de uma ação declaratória de filiação socioafetiva post mortem. Nesse julgamento, o tribunal reconheceu, assim, o direito de uma neta, criada como filha por seus avós, de corrigir seu registro civil.

Além disso, a decisão inovou ao desvincular o reconhecimento socioafetivo das regras rígidas de adoção do ECA, reforçando que o registro civil deve refletir a verdadeira relação familiar.

Da mesma forma, a decisão nos autos nº 0011450-11.2023.8.16.0131 reafirma a coexistência da parentalidade biológica e socioafetiva, garantindo estabilidade familiar e igualdade entre filhos (art. 227, § 6º, CF). Baseada no artigo 1.593 do Código Civil e na jurisprudência do STJ, a sentença determinou que a falta de anuência do pai biológico não impede o reconhecimento socioafetivo.

Consequentemente, essa decisão consolida arranjos familiares contemporâneos, priorizando o bem-estar e a dignidade da criança como pilares fundamentais do ordenamento jurídico.

Dessa maneira, essas decisões mostram a evolução jurídica da socioafetividade, destacando a responsabilidade dos tribunais em equilibrar, sobretudo, os avanços sociais e a segurança jurídica.

Por fim, as jurisprudências reafirmam a legitimidade do vínculo socioafetivo e, além disso, destacam a importância do planejamento patrimonial para prevenir litígios e proteger os direitos dos envolvidos.

Impactos no Planejamento Patrimonial e Sucessório

O reconhecimento jurídico da socioafetividade, enquanto avanço no campo das relações familiares, apresenta uma série de desafios e riscos que exigem atenção no planejamento patrimonial e sucessório.

Litígios entre herdeiros, revisão patrimonial e complexidade tributária exigem estratégias sólidas para mitigar disputas e proteger o patrimônio.

Em vista das mudanças sociais e recentes entendimentos dos tribunais, podemos destacar os seguintes pontos de atenção sobre o tema: 

Ampliação do Número de Herdeiros: O reconhecimento de herdeiros socioafetivos redistribui o patrimônio, reduzindo a participação individual, pois descendentes biológicos e socioafetivos são herdeiros necessários.

Testamentos Questionáveis: O artigo 1.857 do Código Civil permite dispor de 50% dos bens, mas omitir herdeiros socioafetivos pode invalidar disposições e reduzir a parte disponível.

Litígios Familiares: A falta de um planejamento claro pode gerar disputas sobre a legitimidade do vínculo socioafetivo, especialmente quando outros herdeiros contestam essa relação.

Revisão de Instrumentos Patrimoniais: Instrumentos como doações e testamentos, que não considerem vínculos socioafetivos, podem ser questionados judicialmente. 

Estratégias Jurídicas para Mitigar Riscos em Vínculos Socioafetivos

O primeiro aspecto a ser compreendido é a vontade dos patriarcas e matriarcas, além dos vínculos afetivos construídos ao longo do tempo com o filho socioafetivo. Quando há um apelo moral e desejo genuíno de reconhecimento, é essencial usar ferramentas jurídicas para evitar conflitos entre herdeiros.

Podemos destacar as seguintes ferramentas para garantir o reconhecimento do vínculo:

Pactos Declaratórios e Reconhecimentos Formais: A formalização de vínculos socioafetivos por meio de escritura pública reduz os riscos de contestação. Esse instrumento, confere segurança jurídica e evita disputas judiciais futuras.

Testamentos e Planejamento Sucessório: Conforme a legislação vigente, o reconhecimento de filhos biológicos pode ser realizado por meio de testamento. Além disso, a jurisprudência tem evoluído para atender às novas demandas sociais, e possíveis mudanças no projeto do novo Código Civil também abordam essa questão.

Diante desse cenário, incluir herdeiros socioafetivos em testamentos não apenas formaliza o reconhecimento do vínculo, mas também é uma medida essencial para prevenir litígios. 

A destinação de bens de maneira clara e com justificativa detalhada reduz questionamentos jurídicos e facilita o cumprimento da vontade do testador.

Estruturas de Holdings Familiares: A constituição de holdings familiares permite centralizar a gestão de bens, reduzindo conflitos e facilitando a inclusão de herdeiros socioafetivos no planejamento patrimonial. Essa ferramenta, também auxilia na proteção do patrimônio contra litígios externos e na mitigação de impactos tributários, tornando-se uma das melhores estratégias. 

Conclusão

O reconhecimento dos vínculos socioafetivos é um reflexo da evolução do conceito de família no Brasil, mas também introduz desafios significativos ao planejamento patrimonial e sucessório. Nesse cenário, o planejamento patrimonial deve ser técnico, considerando as leis e as particularidades emocionais e afetivas das famílias.

Estratégias como pactos declaratórios, testamentos e holdings familiares reduzem riscos da socioafetividade, garantindo conformidade legal e alinhamento aos objetivos familiares. Afinal, preservar o patrimônio vai além de proteger bens; trata-se de perpetuar legados e valores que definem a essência de cada família.

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